terça-feira, 19 de maio de 2009

Documentário “Janela da Alma”: O olhar sob várias perspectivas



À primeira vista o documentário de João Jardim e Walter Carvalho aparenta ser um filme sobre o ato de ver, e como algumas pessoas que possuem limitações físicas visuais o encara. Porém, o próprio título do documentário deixa transparecer que é muito mais que isso. O documentário não se limita a tratar da visão ou da falta e escassez dela a partir de uma perspectiva pessimista ou limitada. O documentário vai além, ressaltando a questão do olhar como intermediador entre o subjetivo e o real - podemos escolher a forma de como olhar para o real ou quando não temos essa escolha, a própria limitação irá criar outras estratégias de construção do real. O filme de Jardim e Carvalho, investiga sobre o tema “visão”, através de diversas vertentes, sejam elas de cunho artístico, filosófico, poético, científico ou social. O intuito desse documentário é fornecer múltiplas interpretações do discurso imagético.


O primeiro depoimento apresentado é o de Hermeto Pascoal, músico multinstrumentista, que não consegue fixar os olhos em um único objeto. Suas pupilas se mexem ininterruptamente em diferentes direções, o que o faz descrever com bom humor, que sua vista é rica, porque enxerga mais. Hermeto Pascoal revela que quando tinha 30 anos, chegou a querer ser cego temporariamente, para que assim pudesse melhor desenvolver sua percepção musical. O músico diz que a visão não se dá fisicamente, com os olhos. Ao contrário, a visão verdadeira seria a visão interior. A questão da imaginação, uma outra leitura para essa questão da visão interior, exposta por Hermeto Pascoal, também é abordada no filme. A imaginação como alimentador da criação artística. Para o poeta Manoel de Barros, “a transfiguração é a coisa mais importante para o artista”. Manoel de Barros diz isso explicando que o modo como enxerga fisicamente o mundo não influencia seu trabalho, mas sim o seu olhar interior.


Outros depoimentos ao longo do documentário também marcam muito, como é o caso do fotógrafo cego esloveno Evgen Bavcar que conseguia através de suas fotografias, obter imagens do objeto focado. Qualquer pessoa se perguntaria como um fotógrafo cego consegue enquadrar uma fotografia? O documentário não responde a essa pergunta e nem mesmo o Evgen, mas o documentário mostra o fotógrafo em ação, fazendo fotografias e medindo com as mãos o foco, tateando o espaço entre a câmera e a modelo. Certa vez ele também fotografou a sobrinha Verônica num campo e foi guiado pelo som do sininho que ela carregava para tal ação. E é como ele diz: “Na verdade fotografei o sininho, mas este não pode ser visto. Trata-se então de uma fotografia do invisível”. O fotógrafo cego trabalha com a "desnaturalização" do discurso imagético, com o olhar inorgânico, ou seja, ele trabalha com a fotografia que não apresenta referencial, necessitando de uma construção de significado. As fotografias dele são interessantes por isso, pois não são prontas. Evgen também questiona a perda da capacidade de saber olhar que vem acometendo às gerações atuais. E esse olhar não é o físico, mas aquele que o escritor José Saramago, autor do livro Ensaio sobre a Cegueira, explicitou na sua fala. Saramago fala de como surgiu a idéia de escrever Ensaio sobre a Cegueira: ele se questionou como seria o mundo se todos fôssemos cegos. De acordo com sua reflexão, a resposta é que já somos, tendo em vista a total desordem que assola os países, o desafeto entre as pessoas, a miséria etc. O livro de Saramago ainda serviu como base para a contrução do roteiro do filme "Ensaio sobre a cegueira" de 2008, que mostra a proliferação de uma epidemia de cegueira numa cidade moderna, resultando no colapso da sociedade. Assistam ao trailer do filme:



Outro depoimento que me impressionou foi o da cineasta Marjut Rimminen, que tem um trauma relacionado à forma como ela achava que a mãe a olhava pelo seu estrabismo. “Many Happy Returns”, filme com estética de animação, dirigido por ela e que trata de deformidade, de certa forma espelha o trauma a pouco relatado. Segundo Marjut, o que a inspirou a fazer tal filme foi a questão da pressão psicológica atribuída à menina deformada (personagem principal), pelo fato dela ter que ver e testemunhar fatos difíceis e traumatizantes. Marjut hoje em dia, depois de uma cirurgia corretiva nos olhos e depois de constatar que ninguém percebeu a diferença nela, chegou a conclusão de que a lesão que ela tinha era interna e tinha mais a ver com uma realidade construída por ela, do que com a visão que os outros tinham dela.

Um trecho do filme Many Happy Returns:




Para intercalar entrevistas ou mesmo para explicitar um sentimento, a fotografia de Walter Carvalho busca imagens que (re)pensam o ato de ver. Esse é o sentido do primeiro plano do filme, quando saindo da tela preta, surgem imagens desfocadas de uma fogueira sendo alimentada em meio à escuridão remetendo ao mito da caverna, de Platão – é como se vivêssemos num mundo de ilusão, e por isso mesmo necessitamos da luz da verdade para nossa libertação desse mundo. Em seguida, a segunda dessas imagens incorporadas ao filme é um plano em super detalhe da pele de uma mulher. A proximidade da lente é tal que o corpo torna-se quase algo abstrato, sendo reconhecido apenas após alguns segundos.


mostra o fotógrafo em ação, fazendo fotografias e medindo com as mãos o foco, tateando o espaço entre a câmera e a modeAo longo do documentário são transmitidas também, imagens desfocadas à semelhança de olhos míopes que buscam captar a sua própria realidade. É o caminho percorrido no plano da expressão para a “desnaturalização” da imagem, caminhando para a pura abstração na seqüência das luzes noturnas das grandes cidades desfocadas.


As últimas cenas são de um parto natural sendo filmado sem cortes. No fim, vê-se o recém-nascido abrindo os olhos e ali temos o primeiro contato visual da criança com o mundo. Com essa imagem da criança abrindo os olhos pela primeira vez, o documentário está reiniciando toda a discussão. E é esse ver (ou não ver) que norteou toda a problemática de Janela da Alma.


Para finalizar, é como o poeta Antônio Cícero ressalta ao problematizar a expressão que dá o título do filme, cunhada pelo pintor renascentista Leonardo da Vinci: “o olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. Para Cícero, o problema em questão é que se o olho é a janela da alma, há aí a necessidade de um outro olho para ver essa janela (que também é janela). E aí é necessário mais um olho e assim sucessivamente, até o infinito. E é com essa bela interpretação que encerro a minha análise sobre esse documentário que é pura poesia e lirismo. Eis um trecho deste esplêndido documentário:





Por Nathielle Hó, estudante do 5º período de Comunicação Social, do Centro Universitário Plínio Leite.

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